
Para refletirmos sobre “maldições hereditárias” é preciso voltar à sua origem, mas isso não é algo que precise de grande esforço na pesquisa histórica, pois seu surgimento se deu nos anos quarenta do século passado, ou seja, é uma doutrina muito nova na fé cristã de milênios.
Em sua origem, a doutrina das “maldições hereditárias”, está ligada ao movimento da confissão positiva. Esse movimento se estabeleceu no meio cristão por volta de 1940 e teve em Kenneth Hagin um dos maiores divulgadores dessa nova doutrina que através de seus inúmeros livros trouxe a popularização da teologia da fé que inclui a confissão positiva. O movimento da confissão positiva gerou a teologia da prosperidade e, como subproduto, a doutrina das “maldições hereditárias”.
A confissão positiva se alicerça no poder humano, ou, mais precisamente, no poder das palavras ou “decretos” que fazemos. É comum um seguidor da teologia da prosperidade, quando está enfermo dizer com veemência que aquela enfermidade não lhe pertence, pois segundo tal teologia, se dissermos que estamos doentes, “há poder em nossas palavras”. Muitos seguidores da teologia da prosperidade já adoeceram de enfermidades que não lhes pertencia (desculpem-me o cinismo, mas é irresistível).
A maldição hereditária surge nesse contexto como um subproduto da confissão positiva. Se há poder em nossas palavras para sermos abençoados, também há poder em nossas palavras para sermos amaldiçoados. Está pronta a nova doutrina. As palavras amaldiçoadas se perpetuam por gerações e os demônios se encarregam de torná-las reais nas vidas das pessoas.
Vamos pensar…
- Podemos realmente decretar coisas em nossas vidas, mas são coisas que dependem de nossas atitudes. Eu decreto que vou emagrecer e começo me alimentar melhor. Eu decreto que vou ser mais atencioso com meus filhos e passo a dedicar mais tempo para eles. São coisas que estão ao alcance das nossas possibilidades cotidianas e a verbalização desses propósitos podem nos ajudar na disciplina e esforço pessoal necessários para se alcançar os objetivos desejados; todavia, decretar aquilo que não depende de nós e pensar que há poder em nossas palavras é ignorância e arrogância. Parece que essa dupla nunca se desligou. Quem anda por aí liberando decretos como um ditador militar do século passado, não passa de um falastrão. É ignorante porque não conhece a Deus e Seu caráter; é arrogante porque acredita que suas palavras são poderosas para sujeitar Deus aos seus próprios desejos.
- Crer na necessidade da quebra das maldições é refazer a doutrina da expiação, a doutrina da graça, a doutrina da regeneração. Cristo só não é mais suficiente para quebrar a maldição da humanidade: Cristo nos redimiu da maldição da Lei quando se tornou maldição em nosso lugar, pois está escrito: “Maldito todo aquele que for pendurado num madeiro” (Gálatas 3:13).
- Que regras de hermenêutica (ciência de interpretação) foram aplicadas para desenvolver essa doutrina? Como podemos postular uma doutrina tão importante para os cristãos sem fundamentação bíblica no Novo Testamento? Mesmo no Antigo Testamento, os textos usados para a fundamentação dessa doutrina são isolados e fora do contexto, ou seja, “um texto fora do contexto é meramente um pretexto”. Essa doutrina se sustenta em uma teologia pobre e em interpretações particulares. O tema, se verdadeiro, não é sequer citado por nenhum dos autores do Novo Testamento.
- Não há registros da prática dessa doutrina na igreja neotestamentária e nem no período dos pais da igreja. Clemente de Roma, Policarpo discípulo do apóstolo João, Irineu, discípulo de Policarpo e nenhum outro pai da igreja fazem menção alguma sobre a prática da “quebra de maldições hereditárias”, ou seja, não há registros na história da igreja sobre a prática dessa doutrina até os anos 40 do século XX. É uma nova doutrina, um modismo contemporâneo, como muitos outros que estão na igreja evangélica nos dias atuais.
- Haverá algo que se possa dizer: “Veja! Isto é novo!”? Não! Já existiu há muito tempo, bem antes da nossa época (Eclesiastes 1:10). Essa doutrina é nova no sentido de aplicação, mas não no sentido de inovação. A doutrina das maldições hereditárias é uma adaptação evangélica do carma budista e da doutrina da purificação kardecista. Há muitas semelhanças entre elas.
- Há ainda a questão clássica da transferência de culpa. As “maldições hereditárias” é uma tentativa consciente ou não de transferir culpas para outros. É um caminho menos doloroso para aqueles que não querem assumir e enfrentar seus dilemas, erros, pecados e a própria vida. O caminho menos íngreme é culpar o pai, ou pior, o demônio do pai.
Para terminar, confira o que Paulo diz em Gálatas 1:6-8:
“Admiro-me de que vocês estejam abandonando tão rapidamente aquele que os chamou pela graça de Cristo, para seguirem outro evangelho que, na realidade, não é o evangelho. O que ocorre é que algumas pessoas os estão perturbando, querendo perverter o evangelho de Cristo. Mas ainda que nós ou um anjo dos céus pregue um evangelho diferente daquele que lhes pregamos, que seja amaldiçoado!”
A minha conclusão é que há maldição na doutrina da maldição hereditária.